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Quadra 1, lote 1, Residencial Don Bosco, Cidade Ocidental. Veja como como chegar aqui.

Relato de uma Cambone.

“Quando, estive pela primeira vez na Casa, trazida pelo amor e pela dor, fiquei encantada, literalmente hipnotizada pela plasticidade e pelo espetáculo que vi”. O toque dos atabaques entrou em mim no mesmo ritmo do pulsar do meu coração e eu me deixei levar pela magia e força da gira de Ogum. Pensei já ter me surpreendido com tudo naquela noite, até que me foram apresentados os Exus, daí entendi porque se diz que nesta vida se vive e não se vê tudo.
Aquelas Entidades de olhar penetrante comandada pelo Sr. Tranca Rua das Almas, com sua capa vermelha e negra, movimentando-se pelo terreiro, me fizeram lembrar-se do fascínio tantas vezes descrito por Hemingway sobre as touradas. Pareciam todos toureiros numa invisível tourada do bem contra o mal; da cura contra a dor; do alívio contra a demanda.
Mesmo sem conhecer os "porquês", podia-se entender, sem a usar a razão a grande batalha que se travava ali, um combate cheio de amor e "malícia", para subjugar forças poderosas e invisíveis.
Durante uma semana toda não pude pensar em outra coisa, a não ser voltar. E Voltei. Para, semana após semana ser surpreendida. Ora pela simplicidade e sabedoria dos Pretos Velhos, ora pela força e dignidade dos Caboclos. Ainda me estava reservado o encantamento pela elegância dos Ciganos, pela alegria das Crianças e me deixei lançar pela fantástica retidão dos Boiadeiros.
De tanto ir e vir quis ficar, vestir o branco no corpo e na alma e fazer parte daquele balé pela paz e pela vida. No primeiro dia na corrente, aquilo que imaginei ser só alegria, se transforma numa mistura de emoções que poucas vezes havia experimentado na vida, vontade de ir e de ficar, confiança e duvida segurança e medo, mas fiquei mesmo assim, ciente de que estava fazendo a escolha certa, e dando uma chance, não para a Umbanda, mas para mim mesma.
Sempre gostei de desafios e esse foi dos bons. Tive que aprender a deixar soltas as amarras que me prendiam ao domínio de mim mesma, a não ter sempre o comando absoluto de tudo e mesmo assim conciliar consciência e ausência.
E aí, fui cambonar e outras lições me aguardavam. Lições de dedicação e humildade. Percebi que não bastava respeitar, era preciso servir. Mas não uma servidão cega e sim um servir onde se compartilha ensinamentos, donde se suga todo proveito possível: até entender que estava servindo a mim mesma.
Cada charuto que acendi cada bebida que servi, cada Ponto que lavei, acendeu em mim uma chama que arde, mas não queima; embriagaram-me de esperança e lavaram de minha alma toda e qualquer dúvida que ainda resistia em mim.
Toda vez que achei que não em surpreenderia com mais nada, fui pega pela minha própria ingenuidade. E chorei todas as lagrimas de emoção a que tive direito.
Quando vi Sr. Akuan repreender com os olhos cheios de amor, lembrou-me do que é ser pai ou mãe. Quando vi Sr. Folha Verde emocionar-se me meu casamento entendi que vale a pena, sempre, chorar de emoção; quando levei um enorme puxão de orelhas do Sr. Rompe Mato e ao me desculpar ouvi dele "eu só brigo com quem gosto" me certifiquei da profundidade de uma verdadeira relação de afeto e amizade. No dia em que foi jogado meu "Obi", limpei meu coração de todo e qualquer desejo e fui presenteada com os ventos da força e da coragem que são soprados por Iansã. E ser filha dela não é fácil. Tenho que dominar a intensidade de meus próprios ventos para que refresquem e limpem, mas não destruam. E a não despejar sobre Ela a responsabilidade pelos meus próprios vendavais. Eu continuo ventando, assim como Ela, mas já consigo transformar raios e tempestades em chuvas mais amenas. Pelos menos venho tentando com afinco. Às vezes consigo, às vezes não, mas tenho contabilizado apenas os êxitos, para não me entristecer com o que não conseguir.
E continuo lavando tabuas, uma a uma. Quando esfrego uma tabua, limpo de mim toda magoa, quando quebro uma vela, quebro minhas resistências, quando afio um ponteiro, torno mais afiado meu desejo de um dia quão sabe chegar onde devo ou preciso. Venho me apaixonando constantemente. Deixei-me seduzir pelo humor acido da minha querida Velha de Cemitério, que me chamava de "metida a sabichona e curiosa" e que confiou em mim o motivo pelo qual vem servindo a quem precisa, contando-me sua história, que tentei reproduzir da maneira mais fiel possível, para conhecimento de todos. E tive que dominar o ciúme de vê-la sendo cambonada por outra pessoa que não eu. Fui tomada pelo carisma da Cigana Carmem, que ao me emprestar seu espelho, pediu para que eu visse refletido quem realmente sou. Encantei-me com o comportamento cheio de humor e sabedoria de Chermira, que me ensinou a o amor de um modo surpreendente e inesperado; pela devoção de Vovó Maria Conga, por Nossa Senhora dos Açores e que com muita paciência me contou que trançava palha de cana infinitas vezes até a raiva passar (como seria bom se aprendêssemos a trançar nossa própria raiva, neste cativeiro em que vivemos).
Convivi com a força dócil do Sr. Vira Mundo, e com a magia encantadora de Mama Rosa, cujo perfume pude sentir durante dias, dando a certeza de sua presença. Fui tomada pela pontaria certeira das cartas de Ramirez e compartilhei a sua felicidade ao reconhecer entre os que ali estavam a sua filha de carne; e pela alegria por vezes quase infantil de Vovó Catarina (só não aprendi ainda a acender cachimbo, mas eu chego lá), isso sem falar na sua vitalidade, deixando-me exausta, mas feliz de tanto andas atrás dela.
Presenciei o Tio Antônio aborrecido e desconfortável por beber uma bebida que não era dele, mas mesmo assim ser gentil com quem esteve em sua frente. Até que ao cambonar o Caboclo Boiadeiro, eu pude ver com olhos que nem sabia ter, seu rosto, de um homem agreste, magro e moreno, se formar por sore as feições loiras de seu cavalo. Minha emoção foi igual à dele e choramos os dois e ouvi dele que a emoção é um dos ingredientes indispensáveis a gira dos Boiadeiros, quem só com esse sentimento conseguimos tornar concreta e possível à força destes "homens", que estes animais de tamanho e força incríveis têm a docilidade de se deixar conduzir, que nós não temos, mesmo quando precisamos ou pedimos.
Aprendi a compreender o peso e a dos do Caboclo Guará, ao ver sua tribo dizimada e seus filhos mortos por ele mesmo, na te nativa de solver com sangue sua incapacidade de escolher a hora certa de guerrear (quantas vezes nós mesmo não adiamos batalhas e quando por fim nos decidimos lutamos a luta certa na hora errada). Hoje respeito seu silencio cheio de dor e arrependimento, e s ei o que o simples fata dele estar ali já nos ajuda, sem que precise dizer uma palavra sequer. E o que dizer do Sr. Ogum Matinata? E da minha satisfação e conseguir romper a sua resistência inicial ao cambone novo? (E aprendi com a Uca a não ter ciúmes de novos cambones e a quem agradeço por todas as vezes que recorri a ela e fui ajudada.) Sr. Matinata, agora me conduz pelos caminhos de sua sabedoria, pelos segredos da magia do seu ponto e pelo modo quando ao nos chegar pelas costas nos faz escancarar o coração.
"Quem vê cara não vê coração, filha" me disse ele. E eu fico ali, segurando seu coité, bebendo dos ensinamentos que ele no seu modo sisudo de ser me dá com tanta boa vontade. Sr. Tatá Caveira mereceria um capitulo a parte. E ai de quem não andar na linha! Inclusive eu! Ele exige na mesma proporção que entrega. Diz todos os palavrões que eu mesma tenho vontade de dizer e por vezes digo. Fica indignado com a falta de vontade e força das pessoas, mas os acodes mesmo assim. Fica bravo, as protege; xinga, mas ajuda; reclama, mas está sempre lá, ás vezes de mau humor, como todos nós e recebe a todos com aquele olhar maroto de "lá vem mais um..." Conversa com Sr. Morcego, com a intimidade de velhos amigos ao mesmo tempo em que me cobre com sua capa, sempre que pressente que eu preciso de "colo" e diz que só eu mesma para gostar de colo de Exu. E eu gosto!
E assim me é permitido ir transitando entre essas Entidades maravilhosas, entendendo que estão mais próximas de nós do que podemos supor como disse a Velha do Cemitério, quando choraminguei que estava com saudade dela (Só temos saudade de quem esta longe, filha)!
Só não entende quem não quiser! E vou continuar lavando tabuas, acendendo charutos e velas, servindo bebidas, pois é o mínimo que posso dar, pelo muito que tenho recebido.
Sheila Riekes Prochmann- Abril 2004

Com a colaboração de Gabriel Magnani

Um comentário:

adelia disse...

Emocionante esse relato, só mesmo quem é umbandista pode sentir todo esse amor. As entidades nos ensina só com um olhar, cuida só com um olhar. ´Não precisa falar, com o seu olhar nós já entendemos. Devemos respeitar nossos amigos espirituais, pois eles não nós abandona, sempre está ao nosso lado, mesmo que não percebamos. Adélia.